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Uma boa parte da minha dolorosamente cara carreira na universidade foi passada a estudar estilo cinematográfico e convenções. Apesar disto ter parecido um pouco esquisito na altura, foi muito divertido. Abriu-me os olhos para algumas das complexidades mais subtis da indústria cinematográfica.
Uma das coisas mais importantes que absorvi da cadeira com o nome pouco imaginativo “Introdução ao Estudo do Cinema” foi esta ideia:
- Quando se trata de filmes, alguns dos componentes mais importantes estão entre aqueles que são mais facilmente esquecidos.
A maioria das pessoas aprendeu a apreciar a importância da iluminação, do casting, da música etc. Mas muitos esquecem-se que os filmes são, acima de tudo, uma fonte de relaxamento, diversão e entretenimento.
Acima de tudo, um bom filme deve ser fácil de ver.
Índice
- Fazer a Produção de Filmes Parecer Fácil
- Tornar os Filmes de Poker Credíveis e Simples
- Rounders: Um Clássico do Poker
- Casino Royale: Bond vs Poker
- O Espectador Especialista em Casino Royale
- A Autenticidade de Rounders vs O Glamour de Casino Royale
Fazer a Produção de Filmes Parecer Fácil
Na realidade, alcançar um nível de fluidez suficiente requer muito trabalho. Nós, como seres humanos, temos uma capacidade nata para perceber quando algo não está bem.
Nem sempre conseguimos perceber exatamente porquê, mas quando algo está nem que seja apenas um pouco errado, sentimo-nos ansiosos, desconfortáveis e desinteressados. É por isso que preferimos ver o nosso reflexo, do que uma foto de nós próprios. Sabemos como as coisas devem ser, e é assim que gostamos delas.
Esta sensação de expectativa subconsciente permite-nos relacionar com filmes. E tal permite que um bom enredo nos comova ou nos intrigue emocionalmente. É um poderoso instinto humano.
Está especialmente presente nos jogadores de poker que desenvolveram um género de “sensor aranha” nas mesas.
Se um filme acerta em cheio, não temos problema nenhum em nos perdermos em mundos cheios de dragões, magia e fantasia.
Mas se o filme não acerta nos pontos fulcrais, dificilmente passamos dos créditos iniciais.
Obter a fluidez correta tem tudo a ver com trabalhar com atenção aos detalhes.
E é por isso que os filmes mais fáceis de ver são normalmente aqueles mais difíceis de fazer.
Tornar os Filmes de Poker Credíveis e Simples
Pense num sonho que tenha tido.
- É possível que me consiga resumir aquilo que aconteceu facilmente.
- Mas é provável que tenha dificuldades em descrever detalhes específicos ou lembrar-se de pequenas complexidades.
Mas replicar estes detalhes é exatamente o que as equipas de produção têm de fazer para dar vida aos sonhos de um escritor/argumentista. Para além disso, têm de encontrar uma forma de o fazer que seja eficaz e fluída.
Este processo é desafiante, na melhor das hipóteses. Mas fazer um filme de poker de sucesso pode ser quase impossível. A complexidade do poker torna difícil criar cenas que sejam autênticas o suficiente para serem suficientemente credíveis e simples para serem compreendidas por um leigo.
Estranhamente, os filmes de poker não são escritos para jogadores de poker. Se pensar bem, porque haveriam de ser?
Os filmes são feitos com o objetivo de fazer dinheiro! E para isso é preciso agradar ao maior número de pessoas possível.
- Um filme de poker interessante requer algum conhecimento do jogo.
- A verdade é que o seu filme não chegará a muita gente se apelar apenas a jogadores de poker.
Encontrar um equilíbrio entre uma variedade de públicos é um dos maiores desafios que os realizadores de filmes de poker enfrentam.
- Se o enredo for demasiado simples, o filme não terá profundidade, será aborrecido e previsível e ninguém o verá.
- Se o tornar demasiado autêntico, e aqueles que não forem jogadores de poker tiverem dificuldades em seguir a trama, de novo, ninguém o verá.
É um verdadeiro problema para os realizadores de filmes de poker:
“Como é que consegue educar um muggle do poker para o colocar a um nível capaz de compreender totalmente e apreciar um autêntico filme de poker sem o fazer sentir-se estúpido ou alienado?”
Olhemos para dois exemplos para ver o quão eficazmente conseguiram fazê-lo.
Rounders: Um Clássico do Poker
Rounders é, tal como anunciado, um filme de poker. Por isso, é justo assumir que pelo menos algum do seu público terá algum conhecimento sobre o jogo (considerando que escolheram ver o filme). Rounders é um pouco mais avançado nos seus tutoriais do que outros filmes, como Maverick ou Casino Royale (por razões que discutiremos mais abaixo).
Posto isto, o casting carregado de estrelas apelou às massas. Por isso, o realizador, John Dahl, tinha de desenvolver uma forma de agradar a um público diversificado.
- Uma forma como o fez foi dar utilidade aos dealers e staff. Estas pessoas são parte integrante de qualquer sala de poker.
- A sua presença para anunciar a ação permite que as pessoas que estão familiarizadas com o jogo acompanhem o enredo.
- Adiciona, também, uma camada extra de autenticidade, e é por isso que é uma abordagem utilizada pela maioria dos outros filmes de poker.
É uma excelente característica! Mas a ferramenta educacional mais impressionante de Rounders nasce da sua estrutura.
Contrariamente ao que acontece em muitos outros filmes de poker, Rounders faz uso de perspetivas tanto na primeira como na terceira pessoa. Este ângulo é muito eficaz no que toca a agarrar a atenção do público. Permite-nos saber qual a mentalidade do protagonista, o que é muito mais fascinante e subtil do que uma narração normal.
A primeira mão é o melhor exemplo disto. Somos imediatamente brindados com muita informação sobre os jogadores, as regras do poker e os limites. O filme bombardeia-nos com termos de poker desde o início.
Apesar de ser conciso e muito bem escrito, ninguém quer sentir que está numa aula. Portanto, esta quantidade de informação de uma só vez tem duas potenciais desvantagens:
1. Em primeiro lugar, pode sobrecarregar os novatos do poker que estão a ver o filme, fazendo com que eles percam a noção da ação ou desliguem completamente.
2. Em segundo lugar, os jogadores de poker talentosos provavelmente acharão esta parte muito chata, especialmente se a gíria for usada em demasia ou até mal aplicada.
Mas graças à forma inteligente como o filme utiliza a primeira pessoa, é-nos dada continuidade através da narração de Mike, o protagonista. Rounders alterna entre o modo tutorial e estratégico muito mais facilmente do que filmes que dependem de interações desajeitadas entre personagens.
O filme elimina a necessidade de cenas longe da mesa de poker.
- Os muggles do poker entre o público conseguem seguir o jogo em tempo real.
- Os gurus do poker têm tudo o que precisam para começar a analisar a estratégia de Mike.
Também adiciona uma sensação de solidão e monólogo interior, uma autêntica característica do poker.
Graças à sua estrutura criativa, o uso da primeira pessoa no filme dá-lhe liberdade de educar o público de uma forma que os outros filmes não conseguem.
É um estilo muito eficaz.
Casino Royale: Bond vs Poker
Depois de uma perseguição de 20 quilómetros, Casino Royale pode ser mais foleiro do que os sapatos do James Bond, mas é, ainda assim, um excelente filme. É a hipérbole padrão do 007 e é apoiada nisso que toda a franquia Bond foi construída.
E como seria de esperar, o poker não foge a isso, com limites ridículos, mauzões excêntricos e mãos de poker exageradas.
Posto isto, não estamos aqui para discutir a credibilidade do poker no filme. Vamos focar-nos na forma como o filme resolve o problema de educar o público.
Grande parte das pessoas vê o Casino Royale pelo gosto que têm pelo franchise Bond e não pelo jogo de cartas. Portanto, não seria totalmente errado dizer que poker autêntico é irrelevante... desde que haja gadgets suficientes, Bond girls e perseguições de carro, obviamente.
Na realidade, grande parte de Casino Royale passa-se numa sala de jogo. Este franchise tem um dos mais diversificados públicos na indústria cinematográfica, por isso são necessárias algumas lições de poker para todos serem capazes de seguir o enredo.
Considerando que o número de fãs de 007 é tão grande, educar um público diversificado representa um desafio considerável.
- Como é que educa autênticos noobs sem os fazer sentir estúpidos?
- E como pode fazê-lo de uma forma que os jogadores de poker mais experientes não achem aborrecido?
Não é fácil, mas o realizador de Casino Royale, Martin Campbell, encontrou algumas formas muito inteligentes de o fazer.
O Espectador Especialista em Casino Royale
Casino Royale desenrola-se na perspetiva da terceira-pessoa (ou seja, o público apenas existe como se fosse um mero espectador). Portanto, não podemos ter uma visão sobre a mente de Bond como era possível com Mike McDermott, em Rounders.
Por isso mesmo, o filme tem de usar outras personagens para educar o público.
Uma das formas como o faz é através de Mathis. Através das suas interações com Vesper e Bond, Mathis pode transmitir conceitos elementares ao público.
A última mão do vídeo abaixo é um excelente exemplo disso:
Ele pode acabar por trair Bond no filme, mas Mathis faz muitos favores ao público, em relação ao poker. Devido ao facto dos seus comentários serem bastante básicos, podem parecer triviais. Mas na verdade, as pessoas preferem sofrer em silêncio do que fazer muitas perguntas sobre algo que não percebem num filme.
- Os espectadores podem sentir-se relutantes ou envergonhados em admitir que não fazem ideia do que está a acontecer.
- Ou podem acreditar na noção de que falar durante um filme é bastante rude.
Há uma possibilidade real de que uma secção do público pode perder-se no enredo durante as cenas de poker.
Contudo, graças às interações de Mathis com Vesper, isso não acontece. Os muggles do poker no público podem adotar o mesmo papel de rail-bird que a própria Vesper tem no filme.
Em vez de estranhos, podem tornar-se naqueles amigos solidários que você vê nos torneios de poker à volta do mundo a apoiar os jogadores.
Estes simpatizantes estão lá para apoiar o seu herói, mas talvez precisem de alguma ajuda para o fazer.
Para além de permitir ao público seguir a ação, as interações de Mathis com Vesper ensinam-nos algumas importantes lições de poker. É uma excelente forma de envolver parte do público que pode sentir-se perdido ou alienado nas cenas de poker.
| A beleza das interações de Mathis com Vesper é a sua autenticidade dentro do contexto do filme. Lembre-se, o poker é algo novo para Vesper. Por isso, é perfeitamente aceitável assumir que ela precisaria que alguém lhe explicasse as regras em tempo real. |
Sob este ponto de vista, é improvável que os comentários de Mathis irritem os fãs de poker obstinados, tanto quanto o uso incorreto da terminologia de poker no filme.
Há uma cena em que Bond utiliza o termo ‘raise’ em vez de ‘apostar’, por exemplo. Este erro é o tipo de coisa que chateia os jogadores de poker.
Utilizar a terminologia do poker corretamente é algo natural para os entusiastas do poker. E quando é mal utilizada, faz os nossos olhos revirar 180º.
A Autenticidade de Rounders vs O Glamour de Casino Royale
Tanto Rounders como Casino Royale usam formas inteligentes de agradar a todo o público, mas a execução de ambos difere.
- Utilizar Bond para explicar as suas ações é uma forma inteligente de adicionar variedade e dar uma explicação mais íntima daquilo que está a acontecer. Mas é mal executado por roteiristas ingénuos.
Se a equipa por trás de Casino Royale desse um rascunho a um jogador de poker, é bem provável que este fizesse um muito melhor trabalho.
- Por outro lado, Rounders, escrito pelo entusiasta do Poker, Brian Koppelman, é muito mais autêntico e respeitado na comunidade de poker.
E está feita a análise a ambos os filmes por um veterano legítimo da “Introdução ao Estudo do Cinema”!
Qual a sua técnica favorita?
Entretanto, boa sorte nas mesas!
